O
artigo 3º/1 do Código de Procedimento Administrativo consagra como princípio
administrativo o princípio da legalidade, ao estabelecer que “Os órgãos da
Administração Pública devem actuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos
limites dos poderes que lhes estejam atribuídos e em conformidade com os fins
para que os mesmos poderes lhes forem conferidos”. Porém, o número 2 do mesmo
artigo acrescenta que “os actos administrativos praticados em estado de
necessidade, com preterição das regras estabelecidas neste Código, são válidos,
desde que os seus resultados não pudessem ter sido alcançados de outro modo,
mas os lesados terão o direito de ser indemnizados nos termos gerais da
responsabilidade da Administração”.
Cumpre, portanto, verificar em que consiste
este estado de necessidade. Temos aqui um estado de necessidade semelhante ao
constante do artigo 339º do Código Civil? E é este estado de necessidade uma
verdadeira excepção ao princípio da legalidade? Para responder à primeira
pergunta, podemos recorrer a um Acórdão do STA datado de 4/03/2004, que define
o estado de necessidade como uma “actuação sob o domínio de um perigo iminente
e actual para cuja produção não haja concorrido a vontade do agente”. De
qualquer forma este acórdão só nos oferece uma visão geral sobre aquilo que é
realmente o estado de necessidade no direito administrativo. O Professor
Sérvulo Correia, in “Em homenagem ao Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral”,
no qual faz uma breve exposição sobre o tema do estado de necessidade, refere
que a diferença essencial entre o estado de necessidade no CPA e no CC reside
no facto de a lesão recair sobre coisa alheia neste enquanto naquele a lesão
recai sobre o interesse público de que a Administração observe as formalidades
estabelecidas no CPA.
Temos,
deste modo, um importante desvio ao regime normal decorrente do artigo 3º/1 do
CPA, pois são validados comportamentos que se desviam das normas em princípio
aplicáveis com o intuito de evitar males manifestamente maiores àqueles que se
dão devido ao incumprimento formal. O Professor Sérvulo Correia encontra neste
estado de necessidade um verdadeiro “princípio geral de direito administrativo,
como vertente, ou subprincípio, do princípio da legalidade administrativa.”
Justifica esta sua tese com o argumento dado pelo Professor Gonçalves Pereira
de que “(…) a actuação em estado de necessidade não implica a rejeição da
legalidade, mas sim, (…) a adopção de uma
legalidade excepcional.” Subscrevo na íntegra este último argumento do Professor
Gonçalves Pereira. A Doutrina é maioritariamente concordante neste ponto.
Atentemos no que escreve o Professor Freitas do Amaral: “(…) está fora de
dúvida que o estado de necessidade não constitui excepção ao princípio da
legalidade: é a própria lei que o consagra.”
Portanto,
podemos apurar que aquilo que à primeira vista pode parecer uma excepção ao
princípio da legalidade, não o é na realidade. E não subsistem grandes dúvidas
acerca disso porque mesmo que a Administração queira agir em estado de
necessidade, só o pode fazer se para tal estiver habilitada pelo preceito 3º/2
do CPA. Esta é uma decorrência óbvia não só do princípio da legalidade como
limite mas, especialmente, deste princípio como fundamento da acção
administrativa.
Quais
são então os pressupostos para se poder actuar em estado de necessidade?
Importa referir que existe um confronto de interesses, apontado pelo Professor
Sérvulo Correia, que adquire superior importância aquando da verificação destes
pressupostos. Os interesses em causa são, por um lado, o “interesse público
tutelado pelo direito e submetido a um perigo iminente e actual que a aplicação
da norma ordinária não arreda e, eventualmente, agrava” e, por outro lado, o
“interesse de segurança e certeza jurídica respaldados pela preferência de lei”.
O interesse público tem de ser considerado e, mormente, ser essencial que seja
superior ao interesse da segurança e certeza jurídica. Passando aos
pressupostos, o Professor Sérvulo Correia aponta cinco pressupostos (que me
parecem inteiramente correctos) como absolutamente vitais para a aplicação do
estado de necessidade. São eles:
- a existência de um perigo
iminente e actual;
- para um interesse público
essencial;
- causado por circunstância
excepcional;
- não provocada pelo agente;
- e só contornável ou atenuável
pela não aplicação pela Administração da regra estabelecida.
Sem a verificação destes pressupostos (o
Professor Freitas do Amaral apresenta-os de forma diferente mas praticamente
com o mesmo sentido) não será possível a legitimação do estado de necessidade e
nesse caso teríamos mesmo uma violação do princípio da legalidade se não fossem
respeitadas as formalidades necessárias no procedimento administrativo.
Fazendo
uma súmula do então referido, diremos que a Administração tem de agir em
concordância com o princípio da legalidade. Quanto ao estado de necessidade,
ele não é uma verdadeira excepção ao princípio da legalidade porque é um tipo
de “legalidade excepcional”. Logo, preenchidos os seus pressupostos, e com base
no artigo 3º/2 do CPA, teremos sempre o respeito pelo princípio da legalidade.
Bibliografia:
“Revisitando
o Estado de Necessidade” in “Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Diogo
Freitas do Amaral” – Sérvulo Correia
“Curso
de Direito Administrativo Vol. II e III” – Diogo Freitas do Amaral
“Direito
Administrativo Geral Tomo III” – Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos
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