terça-feira, 23 de abril de 2013

O Estado de Necessidade e o Princípio da Legalidade



                O artigo 3º/1 do Código de Procedimento Administrativo consagra como princípio administrativo o princípio da legalidade, ao estabelecer que “Os órgãos da Administração Pública devem actuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes estejam atribuídos e em conformidade com os fins para que os mesmos poderes lhes forem conferidos”. Porém, o número 2 do mesmo artigo acrescenta que “os actos administrativos praticados em estado de necessidade, com preterição das regras estabelecidas neste Código, são válidos, desde que os seus resultados não pudessem ter sido alcançados de outro modo, mas os lesados terão o direito de ser indemnizados nos termos gerais da responsabilidade da Administração”.

                 Cumpre, portanto, verificar em que consiste este estado de necessidade. Temos aqui um estado de necessidade semelhante ao constante do artigo 339º do Código Civil? E é este estado de necessidade uma verdadeira excepção ao princípio da legalidade? Para responder à primeira pergunta, podemos recorrer a um Acórdão do STA datado de 4/03/2004, que define o estado de necessidade como uma “actuação sob o domínio de um perigo iminente e actual para cuja produção não haja concorrido a vontade do agente”. De qualquer forma este acórdão só nos oferece uma visão geral sobre aquilo que é realmente o estado de necessidade no direito administrativo. O Professor Sérvulo Correia, in “Em homenagem ao Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral”, no qual faz uma breve exposição sobre o tema do estado de necessidade, refere que a diferença essencial entre o estado de necessidade no CPA e no CC reside no facto de a lesão recair sobre coisa alheia neste enquanto naquele a lesão recai sobre o interesse público de que a Administração observe as formalidades estabelecidas no CPA.

                Temos, deste modo, um importante desvio ao regime normal decorrente do artigo 3º/1 do CPA, pois são validados comportamentos que se desviam das normas em princípio aplicáveis com o intuito de evitar males manifestamente maiores àqueles que se dão devido ao incumprimento formal. O Professor Sérvulo Correia encontra neste estado de necessidade um verdadeiro “princípio geral de direito administrativo, como vertente, ou subprincípio, do princípio da legalidade administrativa.” Justifica esta sua tese com o argumento dado pelo Professor Gonçalves Pereira de que “(…) a actuação em estado de necessidade não implica a rejeição da legalidade, mas sim, (…) a adopção de uma legalidade excepcional.” Subscrevo na íntegra este último argumento do Professor Gonçalves Pereira. A Doutrina é maioritariamente concordante neste ponto. Atentemos no que escreve o Professor Freitas do Amaral: “(…) está fora de dúvida que o estado de necessidade não constitui excepção ao princípio da legalidade: é a própria lei que o consagra.”

                Portanto, podemos apurar que aquilo que à primeira vista pode parecer uma excepção ao princípio da legalidade, não o é na realidade. E não subsistem grandes dúvidas acerca disso porque mesmo que a Administração queira agir em estado de necessidade, só o pode fazer se para tal estiver habilitada pelo preceito 3º/2 do CPA. Esta é uma decorrência óbvia não só do princípio da legalidade como limite mas, especialmente, deste princípio como fundamento da acção administrativa.

                Quais são então os pressupostos para se poder actuar em estado de necessidade? Importa referir que existe um confronto de interesses, apontado pelo Professor Sérvulo Correia, que adquire superior importância aquando da verificação destes pressupostos. Os interesses em causa são, por um lado, o “interesse público tutelado pelo direito e submetido a um perigo iminente e actual que a aplicação da norma ordinária não arreda e, eventualmente, agrava” e, por outro lado, o “interesse de segurança e certeza jurídica respaldados pela preferência de lei”. O interesse público tem de ser considerado e, mormente, ser essencial que seja superior ao interesse da segurança e certeza jurídica. Passando aos pressupostos, o Professor Sérvulo Correia aponta cinco pressupostos (que me parecem inteiramente correctos) como absolutamente vitais para a aplicação do estado de necessidade. São eles:

- a existência de um perigo iminente e actual;
- para um interesse público essencial;
- causado por circunstância excepcional;
- não provocada pelo agente;
- e só contornável ou atenuável pela não aplicação pela Administração da regra estabelecida.

 Sem a verificação destes pressupostos (o Professor Freitas do Amaral apresenta-os de forma diferente mas praticamente com o mesmo sentido) não será possível a legitimação do estado de necessidade e nesse caso teríamos mesmo uma violação do princípio da legalidade se não fossem respeitadas as formalidades necessárias no procedimento administrativo.

                Fazendo uma súmula do então referido, diremos que a Administração tem de agir em concordância com o princípio da legalidade. Quanto ao estado de necessidade, ele não é uma verdadeira excepção ao princípio da legalidade porque é um tipo de “legalidade excepcional”. Logo, preenchidos os seus pressupostos, e com base no artigo 3º/2 do CPA, teremos sempre o respeito pelo princípio da legalidade.

                Bibliografia:

                “Revisitando o Estado de Necessidade” in “Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral” – Sérvulo Correia
                “Curso de Direito Administrativo Vol. II e III” – Diogo Freitas do Amaral
                “Direito Administrativo Geral Tomo III” – Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos

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